– Não somos corajosos com muita assiduidade, e quando nos fazemos covardes acontece, por vezes, que nos lamentamos assim: “Como é duro fazer mal aos homens!... Ah! Por que será isto necessário? De que nos serve manter-mo-nos reclusos se não queremos guardar para nós o que ofende? Não valeria mais viver no tumulto e reparar nos indivíduos os pecados que devem e que é necessário praticar contra todos? Ser louco com os loucos, vaidosos com os vaidosos, entusiasta com os entusiastas? Não seria equânime quando nos afastamos deles tão insolentemente? Quando tomo conhecimento de maldades que outros praticaram para comigo, o meu primeiro sentimento não é regozijar-me? Eis o que está certo, pareço dizer-lhes, dou-me tão mal convosco e possuo tanta razão do meu lado! Obtenham, por isso, prazer à minha custa, tantas vezes quantas puderam! Eis os meus defeitos, os meus erros, a minha loucura e a minha confusão, eis as minhas lágrimas, a minha vaidade, eis a minha noite de coruja e as minhas contradições! Têm aqui matéria suficiente para rir? Riam, portanto, divirtam-se! Não me aborreço com a lei e a natureza das coisas, que querem que os erros e defeitos façam rir! Evidentemente, houve ‘mais belos’ tempos, tempos em que uma pessoa se podia sentir indispensável com qualquer ideia um pouco nova, em que podia, armando com essa ideia, descer para a rua e gritar a cada passo: ‘Observem! Está próximo o reino de Deus! ’... Se eu não existisse, não sentiria minha falta. Nenhum de nós é indispensável!”. No entanto, repito, não é assim que pensamos quando somos corajosos: quando somos corajosos não pensamos nisso...
(Friedrich Nietzsche – A Gaia Ciência)
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