domingo, 29 de março de 2009

A Sonia Liebknecht
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Breslau, antes de 24 de dezembro de 1917
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[...] Ontem fiquei muito tempo acordada – agora não consigo dormir antes da uma, mas preciso ir para a cama as dez, porque apagam a luz, e então no escuro sonho com diversas coisas. Ontem, portanto pensava: como é estranho eu viver permanentemente numa alegre embriaguês, sem nenhuma razão particular. Assim, por exemplo, aqui estou deitada nesta cela escura, num colchão duro como pedra, enquanto à minha volta, no edifício, reina a habitual paz de cemitério; parece que estou no túmulo; através da janela desenha-se no teto o reflexo do bico de gás ardendo a noite inteira diante da prisão. De tempo em tempo ouve-se o ruído surdo de um trem que passa ao longe, ou então, bem perto, sob minhas janelas, o pigarro da sentinela que, com suas botas pesadas, dá alguns passos lentos para desentorpecer as pernas. A areia estala tão desesperadamente sob esses passos, que todo o vazio e a falta de perspectivas da existência ressoam na noite úmida e sombria. E aqui estou deitada, quieta, sozinha, enrolada nos véus negros das trevas, do tédio, da falta de liberdade, do inverno – e, apesar disso, meu coração bate com uma alegria interior desconhecida, incompreensível, como se debaixo de um sol radiante eu estivesse atravessando um prado de flor. No escuro sorrio à vida, como se desconhecesse algum segredo mágico que pune todo mal e as tristes mentiras, transformando-as em luz intensa e em felicidade. E, ao mesmo tempo, procuro uma razão para esta alegria, não encontro nada, e tenho que sorrir novamente – de mim mesma. Creio que o segredo não é outro senão a própria vida; a profunda escuridão noturna é bela e suave como veludo, basta saber olhar. No estalar da areia úmida sob os passos lentos e pesados da sentinela canta também uma bela, uma pequena canção da vida – basta apenas saber ouvir. Gostaria tanto de passar-lhe essa chave mágica para você perceber sempre, em todas as situações, o que há de belo e alegre na vida, para que também você viva na embriaguês, como que caminhando por um prado cheio de cores. Longe de mim a idéia de contentá-lo com ascetismo, com alegrias imaginárias. Concedo-lhe todas as reais alegrias dos sentidos que você deseja. Só gostaria de dar-lhes também a minha inesgotável serenidade interior, para não me preocupar mais com você, para que andasse na vida com um manto de estrelas protegendo-a de tudo que é mesquinho, banal e angustiante.
[...] Ah! Sonitchka tive aqui uma dor violenta. No pátio onde passeio chegam frequentemente carroças do exército, abarrotadas de sacos, de túnicas velhas e camisas de soldados, muitas vezes manchadas de sangue... São descarregadas, distribuídas pelas celas, consertadas, novamente postas para serem entregues ao exército. Outro dia, chegou uma dessas carroças, puxada não por cavalos, mas por búfalos. Era a primeira vez que via esses animais de perto. São mais fortes e maiores que nossos bois, tem a cabeça chata, chifres recurvados e baixos, o que faz com que sua cabeça, inteiramente negra, de grandes olhos meigos, se pareça com a dos nossos carneiros. Originários da Romênia é um troféu de guerra... Os soldados que conduziam a carroça diziam ser muito difícil capturar esses animais selvagens e ainda mais difícil utilizá-los para carregar fardos, pois estavam acostumados à liberdade. Foram terrivelmente maltratados até compreenderem que perderam a guerra e que também para eles vale a expressão “vae victis” [ai dos vencidos]... Só em Breslau deve haver uma centena desses animais. Eles que estavam habituados às ricas pastagens da Romênia receberam uma ração parca, miserável. Trabalham sem descanso puxando todo tipo de carga e, assim, não demoram a morrer. Há alguns dias, portanto, entrou no pátio uma dessas carroças cheias de sacos. A carga era tão alta que os búfalos não conseguiam transpor a soleira do portão. O soldado que os acompanhava, um tipo brutal, pôs-se a bater-lhes de tal maneira com o grosso cabo do seu chicote que a vigia da prisão, indignada, perguntou-lhe se não tinha pena dos animais. “Ninguém tem pena de nós, homens”, respondeu com um sorriso mau e pôs-se a bater ainda com mais força... Os animais deram finalmente um puxão e conseguiram transpor o obstáculo, mas um deles sangrava... Sonitchka, apesar da proverbial espessura e resistência da pele do búfalo, ela foi dilacerada. Durante o descarregamento, os animais permaneciam imóveis, esgotados, e um deles, o que sangrava, olhava em frente com uma expressão no rosto negro e nos meigos olhos negros de criança em prantos. Era exatamente a expressão de uma criança que foi severamente punida e que não sabe por qual motivo nem por que, que não sabe como escapar do sofrimento e a essa força brutal... Eu estava diante dele, o animal me olhava, as lágrimas saltaram-me dos olhos, eram as suas lágrimas. Ninguém pode ficar mais dolorosamente amargurado com a dor de um irmão, querido do que eu, na minha impotência, com esse sofrimento mudo. Quão longe, inatingíveis, perdidas as pastagens da Romênia, suculentas e verdes, belas e livres! Como tudo era diferente, o sol que brilhava o vento soprando, os belos cantos dos pássaros e o melodioso chamado do pastor. E aqui, esta cidade estrangeira, horrível, o estábulo sombrio, o feno mofado, repugnante, misturado com a palha apodrecida, os homens desconhecidos, assustadores, e as pancadas, o sangue que corre da ferida aberta... Oh! meu pobre búfalo, meu pobre irmão querido, aqui estamos os dois impotentes e mudos, unidos na dor, na impotência, na saudade. Entretanto os prisioneiros agitavam-se em volta do carro, descarregavam os pesados sacos e levavam-nos para dentro. Quanto ao soldado, metera as mãos nos bolsos pelo pátio, ria e assobiava baixinho uma canção da moda. Diante de mim a guerra desfilava em todo o seu esplendor.

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Rosa Luxemburgo
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(Esta carta encontra-se publicada em Rosa Luxemburgo, Gesammelte Briefe, Berlim, Dietz, 1984, v.5).
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