sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Quando chega o fim...

... Eu sabia que isto não podia durar sempre. Não foste feita para viver em duas assoalhadas com um escritor que não escreve, não foste feita para tomar banho de água gelada porque a companhia do gás não fia, não foste feita para aturar as má-criações do senhorio porque me atrasei na renda. Não te preocupes comigo: compreendo que te vás embora, não armo escândalos, não te peço que fiques, juro que não me zango se esse amigo de que me estás a falar e que não sei quem é vier ajudar-te a levar a tua roupa, a levar os teus livros. Não me zango: assim que vocês começarem a descer as escadas ligo à Mariana ou à Paula ou à Raquel, convido-as para sair comigo, recomeço a existência do princípio. Não julguem que vou desfazer-me em lágrimas ou que me suicido. Não vou. Asseguro-te que não vou. Em todo o caso, pelo sim pelo não, deixa ficar os lenços de papel e a embalagem de valium. A gente sempre precisa de qualquer coisa que nos faça companhia não é? E detesto limpar o nariz à manga do casaco da mesma forma que a ideia de me atirar pela janela me repugna: ainda podia cair em cima de vocês, lá em baixo no passeio à espera de taxi, ainda podia cair em cima do teu amigo e partir-lhe um osso ou assim e tu havias de imaginar que me sinto agressivo que não sinto com esse filho da mãe, desculpa, com esse rapaz que deve ser que tem de ser, que aposto que é uma jóia de pessoa.
*
(António Lobo Antunes, “Livro de Crônicas”)

Um comentário:

  1. Caríssima Dani,

    obrigado por seguires o meu blog. Dei com o teu no mais puro dos acasos, ao digitar uma frase de José Eduardo Agualusa ("o pior pecado é não amar nunca") no google. Vi o teu blog e segui-lo-ei com atenção.

    Tenho um gostinho especial por António Lobo Antunes, e gosto bastante da crónica da qual fizeste esse excerto ("As coisas da vida").

    De resto, tenho a dizer-te que tens aqui um espaço maravilhoso de refelxão.

    Saudações cordiais,
    João de Matos

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