sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

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O sancta simplicitas!
Em que mundo mais estranhamente simplificado e falsificado vive a humanidade! É infinito o assombro diante de tal prodígio. Quão claro, livre, fácil e simples conseguimos tornar tudo quanto nos rodeia! Quão brilhantemente soubemos. Deixar que nossos sentidos caminhassem pela superfície e conspirar a nosso pensamento um desejo de piruetas caprichosas e de falsos raciocínios! Quanto nos esmeramos para conservar intacta nossa ignorância, para lançar-nos aos braços de uma despreocupação, de uma imprudência, de um entusiasmo e de uma alegria de viver quase inconcebíveis, para gozar a vida! E sobre esta nossa ignorância edificaram-se as ciências baseando a vontade de saber em outra ainda mais poderosa, a vontade de permanecer na incógnita, na contra-verdade, não sendo esta vontade o contrário da primeira, mas sua forma mais refinada. A linguagem, aqui, como em todos os outros lugares, tem que arrastar consigo toda sua torpeza e continuar falando de suas oposições, quando tratam-se de matizes e sutis gradações; além disso, a hipocrisia consuetudinária da moral, que se converteu, de modo invencível, na "carne de nossa carne e sangue de nosso sangue", desnaturalizou-nos também as palavras de nossa própria boca. Nós, que estamos alertas, de quando em quando advertidos do engano, escapamos dela e rimos ao ver que a melhor das ciências continua sendo a que melhor pretende deter-nos neste mundo simplificado, absolutamente artificial, alienado e falsificado para nosso uso, porque essa ciência também, apesar dela mesma, ama o erro, uma vez que por ser vivente, ama a vida.

(Friedrich Nietzsche - Além do Bem e do Mal)

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