terça-feira, 28 de outubro de 2008

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Olhemo-nos no rosto. Somos hiperbóreos – sabemos muito bem como vivemos longe. “Nem por terra nem por mar encontrarás o caminho que te leve aos hiperbóreos”: aí está o que Píndaro já sabia de nós. Além do norte, do gelo, da morte – nossa vida, nossa felicidade... Descobrimos a felicidade, conhecemos o caminho, encontramos a via para sair de milênios inteiros do labirinto. Quem o descobriu, além de nós? – O homem moderno, talvez? – “Não sei mais para quem me voltar; sou tudo aquilo que não sabe mais para se voltar” – suspira o homem moderno... É essa modernidade que nos tornava doentes – essa paz indolente, esse compromisso covarde, toda essa impureza virtuosa do sim e do não modernos. Essa tolerância e essa magnanimidade do coração que “perdoa” tudo porque ela tudo “compreende”, é um siroco para nós. Antes viver nas geleiras do que entre as virtudes modernas e outro-s ventos do sul!... Tínhamos bastante audácia, não poupávamos nem a nós mesmos nem aos outros: mas por muito tempo não soubemos para que dirigir nossa audácia. Nós nos tornamos mornos e nos chamavam fatalistas. Nosso próprio destino – era a plenitude, a tensão, o acúmulo de forças. Tínhamos sede de relâmpagos e de proezas. Nós nos mantínhamos o mais longe possível da felicidade dos fracos, da resignação... Havia tempestades em nosso ar, a natureza em nós se obscurecia – pois não dispúnhamos de nenhum caminho. Fórmula de nossa felicidade: um sim, um não, uma linha reta, um objetivo.
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O que é bom? – Tudo aquilo que eleva no homem o sentimento do poder, a vontade de poder, o próprio poder. O que é mau? – Tudo aquilo que provém da fraqueza.
O que é a felicidade? – O sentimento que a força cresce – que uma resistência foi superada.
Não a satisfação, mas mais poder; não a paz em si mesma, mas a guerra; não a virtude, mas a capacidade (virtude no estilo da Renascença, a virtù, a virtude isenta de moralismo).
Os fracos e fracassados devem perecer: primeiro princípio de nossa filantropia. E realmente se deve ajudá-los nisso.
O que é mais nocivo que um vício qualquer? – A compaixão em ato para os fracassados e os fracos – o cristianismo...



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O problema que apresento assim não é o de saber o que deve substituir a humanidade na escala dos seres (– o homem é um fim – ): mas que tipo de homem se deve criar, se deve querer como tipo de um valor elevado, mais digno de viver, mais seguro de um futuro.
Esse tipo de um valor mais elevado já se apresentou muitas vezes: mas como um feliz acaso, como uma exceção, nunca como resultado de uma vontade. Pelo contrário, é ele que justamente foi o mais temido, era até aqui quase a coisa mais temida em si; – e esse temor fez com que se quisesse se desejasse, se obtivesse o tipo contrário: o animal doméstico, o animal de rebanho, o homem animal doente – o cristão...


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A humanidade não representa em absoluto uma evolução em direção ao melhor, ao mais forte, ao mais elevado no sentido como se acredita hoje. O “progresso” é apenas uma idéia moderna, ou seja, uma idéia falsa. O europeu de hoje, em valor, fica muito abaixo do europeu da Renascença; o prosseguimento da evolução não implica em absoluto, como conseqüência de alguma forma inevitável, a elevação, o acréscimo, o aumento da força.
Em outro sentido, há um sucesso contínuo de casos individuais nos locais mais diversos da terra e nas mais variadas culturas, casos em que se manifesta o que é de fato um tipo mais elevado: algo que, comparado à humanidade em seu conjunto, parece uma espécie de sobre-humano. Semelhantes acasos felizes de sucesso sempre foram possíveis e talvez serão sempre possíveis: e até mesmo famílias, linhagens, povos em seu conjunto podem, em certa circunstâncias, representar semelhantes ditosos acasos.


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Não se deve embelezar nem enfeitar o cristianismo: ele travou uma guerra de morte contra esse tipo superior de homem, excomungou todos os instintos fundamentais desse tipo, tomou todos esses instintos para fazer deles um concentrado do mal, o mau: – o homem forte como tipo do réprobo, do “homem depravado”. O cristianismo tomou o partido de tudo o que é fraco, baixo, fracassado, instituiu como ideal a oposição aos instintos de conservação da vida forte; viciou até mesmo a razão das naturezas mais fortes no espírito, ensinando a classificar os valores mais elevados da intelectualidade como pecaminosos, como enganosos, como tentações. O exemplo mais lamentável: o corrompimento de Pascoal, o qual acreditava na corrupção de sua razão pelo pecado original, quando na realidade não estava corrompida senão por seu cristianismo!

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É um espetáculo doloroso, horrível que se apresentou a meus olhos: tirei o véu que recobre a corrupção do homem. Essa palavra, em minha boca, está pelo menos ao abrigo de uma suspeita: que contenha uma acusação moral contra o homem. Eu o entendo – e gostaria de sublinhá-lo novamente – como isento de moralismo: e isso no ponto em que justamente constatei mais fortemente essa corrupção, onde até aqui se aspirava mais conscientemente à “virtude”, à “natureza divina”. Compreendo a corrupção, é fácil de ser adivinhada, no sentido de decadência: o que afirmo é que todos os valores nos quais a humanidade apóia todos os seus desejos supremos são valores de decadência.
Denomino corrompido um animal, uma espécie, um indivíduo, quando perde seus instintos, quando escolhe, quando prefere o que lhe é prejudicial. Uma história dos sentimentos elevados, dos “ideais da humanidade” – e é possível que tenha de contá-la – seria quase ao mesmo tempo uma explicação do porquê de semelhante corrupção do homem. A própria vida é para mim instinto de crescimento, de duração, de acumulação de forças, de potência: sempre que faltar a vontade de potência, há o declínio. O que afirmo é que essa vontade faz falta em todos os valores supremos da humanidade – que os valores de declínio, os valores niilistas reinam sob os mais sagrados nomes.


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Chamamos o cristianismo a religião da compaixão. – A compaixão se opõe às paixões tônicas que elevam a intensidade do sentimento vital: ela age de maneira depressiva. Perdemos força quando nos compadecemos. A compaixão faz com que aumente e se diversifique mais ainda a perda de força que causa para a vida todo sofrimento. A compaixão torna o próprio sofrimento contagioso; há circunstâncias em que leva a uma perda geral de vida e de energia vital que é totalmente desproporcional com sua causa (– esse é o caso da morte do nazareno). Esse é o primeiro aspecto da coisa; mas há um segundo, ainda mais importante. Supondo que se meça a compaixão com o valor das reações que ela costuma suscitar, sua característica de perigo para a vida se manifesta muito mais cruamente ainda. A compaixão barra em seu conjunto a lei da evolução, que é a lei da seleção. Guarda o que está maduro para o perecimento, luta em favor dos deserdados e dos condenados da vida, confere à própria vida um aspecto mais sinistro e mais duvidoso pela massa dos fracassos de todos os que ela mantém. Houve a ousadia de denominar a compaixão uma virtude (– em toda moral nobre, ela é vista como fraqueza –); ousando ainda mais, dela se fez a virtude, o fundamento e a origem de todas as virtudes – do único ponto de vista, é verdade, coisa que deveria ser reservada ao espírito de uma filosofia que era niilista, que se atribuía como palavra de ordem a negação da vida. Nisso Schopenhauer tinha razão em seu sentido: a compaixão faz negar a vida, a torna mais digna de ser negada. – A compaixão é a prática do niilismo. Mais uma vez: esse instinto depressivo e contagioso barra os instintos que visam a conservação e a valorização da vida. É tanto como multiplicador da miséria como conservador de toda a miséria, um instrumento capital de crescimento da decadência – a compaixão converte ao nada!... Não se diz “nada”: em lugar disso se diz “no além”; ou “Deus”; ou a “verdadeira vida”; ou o nirvana, a redenção a beatitude... Essa retórica inofensiva do reino da idiossincrasia religiosa e moral se mostram muito menos inofensiva quando se percebe que tendência na ocasião se oculta sob o manto das palavras sublimes: a tendência hostil à vida. Schopenhauer era hostil à vida: é por isso que a compaixão se tornou a seus olhos uma virtude... Aristóteles, como é sabido, via na compaixão um estado doentio e perigoso, cujo remédio, segundo ele, era um purgativo ocasional: considerava a tragédia como um purgativo. O instinto da vida deveria levar, de fato, a procurar um meio de refrear semelhante acumulação doentia e perigosa como representa o caso Schopenhauer (e infelizmente também toda a nossa decadência literária e artística, de São Petersburgo a Paris, de Tolstoi a Wagner) com um belo golpe de cabresto: para que ele morra... Nada é mais insalubre, no meio de nossa insalubre modernidade, que a compaixão cristã. Aqui é o caso de médico, aqui é o caso de ser implacável, aqui é o caso de aplicar o bisturi – isso compete a nós, é nossa espécie de filantropia, é nisso que nós somos filósofos, nós hiperbóreos!


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É necessário dizer quem sentimos como nossa antítese: – os teólogos e tudo o que tem sangue de teólogo nas veias – toda a nossa filosofia... É necessário ter visto essa funesta fatalidade de perto, melhor ainda, é preciso tê-la experimentado em si, é preciso ter praticamente sucumbido a ela para compreender que isso não é qualquer brincadeira (– o livre pensamento de nossos senhores naturalistas e fisiologistas é, a meu ver, uma brincadeira – falta a eles a paixão nessas coisas, o que sofre por elas –). Esse envenenamento vai muito mais longe do que se pensa: encontrei toda a arrogância instintiva do teólogo em todo lugar onde hoje há quem se considere “idealista” – onde, em virtude de uma origem mais elevada, se reivindica o direito de olhar a realidade com ar superior distante... O idealista, assim como o padre, tem em suas mãos (– e não só em suas mãos!) todas as grandes noções e se manifesta com desprezo afável contra o “entendimento”, os “sentidos”, as “honrarias”, o “boa vida”, a “ciência”; olha essas coisas do alto de si como forças perniciosas e pervertedoras, acima das quais “o espírito” plana em seu puro “para si em si”: – como se a humildade, a castidade, a pobreza, numa palavra, a santidade não tivessem causado até aqui incrivelmente mais dano à vida que quaisquer abominações e vícios... O puro espírito é a pura mentira... Enquanto o padre for visto ainda como uma espécie superior de homem, ele que é por profissão negador da vida, não haverá resposta à pergunta: O que é a verdade? A verdade foi posta de cabeça para baixo quando o advogado consciente do nada e da negação é visto como o representante da verdade.
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(Friedrich Nietzsche – O Anticristo)
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