quarta-feira, 29 de abril de 2009

 O homem superior
I

“Quando pela primeira vez estive com os homens cometi a loucura do solitário, a grande loucura: fui para a praça pública.
E como falava a todos, não falava a ninguém. E de noite tinha por companheiros volatins e cadáveres; eu próprio era quase um cadáver!
A nova manhã trouxe-me uma nova verdade; aprendi então a dizer: ‘Que me importam a praça pública e a populaça e as orelhas compridas da populaça?’
Homens superiores, aprendei isto comigo: na praça pública ninguém acredita no homem superior. E se teimais em falar lá, a populaça diz: ‘Todos somos iguais’.
‘Homens superiores’, assim diz a populaça. ‘Não há homens superiores; todos somos iguais; perante Deus um homem não é mais do que outro; todos somos iguais!’
Perante Deus! Mas agora esse Deus morreu; e perante a populaça nós não queremos ser iguais. Homens superiores, fugi da praça pública.

II


Perante Deus! Mas agora Deus morreu! Homens superiores, esse Deus foi o vosso maior perigo.
Ressuscitastes desde que ele jaz na sepultura. Só agora torna o Grande Meio-Dia; agora torna-se senhor o homem superior. Compreendeis esta palavra, meus irmãos? Assustai-vos: apodera-se-vos do coração a vertigem? Abre-se aqui para vós o abismo? Ladra-vos o cão do inferno?
Homens superiores! Só agora vai dar à luz a montanha do futuro humano. Deus morreu: agora nós queremos que viva o super-homem.

III


Os mais preocupados perguntam hoje: ‘Como se conserva o homem? Mas Zaratustra pergunta – e é o primeiro e único a fazê-lo: ‘Como será o homem superado?’
O Super-homem é que me preocupa; para mim é ele o primeiro e o único, e não o homem; não o próximo, o mais pobre, nem o mais aflito, nem o melhor.
Meus irmãos, o que eu posso amar no homem é ele ser uma transição e um acaso. E em vós também há muitas coisas que me fazem amar e esperar.
Desprezastes, homens superiores; é isso que me faz esperar, porque os grandes desprezadores são também os grandes reverenciadores. Desprezastes, coisa que merece grande respeito, porque não aprendestes a render-vos, nem aprendestes a ser prudentes.
Hoje, os pequenos tornaram-se senhores: todos pregam a resignação e a modéstia e a prudência, e a aplicação, e as considerações, e as virtudes pacatas.
O que é de espécie feminil, o que procede de servil condição, e mormente a turba plebéia, é o que quer agora assenhorear-se do destino humano. Horror! Horror! Horror!
Esse pergunta uma e outra vez, sem se cansar: ‘Como se conservará o homem melhor, mais tempo e mais agradavelmente?’ Assim são os senhores.
Ó meus irmãos! Subjugai-me esses senhores atuais, subjugai-me essa gentinha: são o maior perigo para o Super-homem.
Homens superiores, dominai as virtudes enganosas, as considerações com os grãos de areia, o bulício de formigas, a ruim complacência, a ‘felicidade do outro’! A ter de vos renderdes, preferi desesperar.
Amo-vos deveras, homens superiores, porque hoje não sabeis viver! Pois assim viveis... melhor!

IV


Tendes coragem, meus irmãos? Estais decididos? Não falo de coragem perante testemunhas, mas de coragem de solitários, coragem de águias, do que não tem por espectador nenhum deus.
As almas frias, os cegos, os bêbados não têm o que eu chamo coração. Coração tem aquele que conhece o medo, mas domina o medo; o que vê o abismo, mas com arrogância.
O que vê o abismo, mas com olhos de águia; o que se prende ao abismo com garras de águia: é este o corajoso.
*
Assim Falou Zaratustra – Friedrich Nietzsche

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